*Especial para o site
Eu que sempre fui da palavra, ando muda, sem ter o que dizer para consolar as dores ou sossegar os medos da filha de 11 anos que precisou operar o coração, num procedimento invasivo e agressivo. Luiza é portadora de uma síndrome rara e que não tem cura, a Síndrome de Marfan. E ela já teve que enfrentar muita coisa.
Nos últimos meses, a expectativa para a cirurgia, que seria em maio e acabou adiada para o fim de setembro por conta da Pandemia, foram dias e dias de confinamento absoluto, exames agressivos, consultas constantes para, enfim, a cirurgia em SP, que não é a cidade onde vivemos. Longe de casa, dos outros irmãos, dos amigos, do restante da família, da vida cotidiana que ela acha que nunca mais terá de volta. Depois de 15 dias de hospital voltamos para casa.
Foi um desafio: as infindáveis horas dela no centro cirúrgico e nossas numa sala de espera, os seis dias de UTI, alguns (poucos) profissionais insensíveis que não souberam lidar com a delicadeza, com os desconfortos dela, as complicações pós cirúrgicas e mais tantos outros dias de internação. Ainda na UTI, Luiza me perguntou chorando se eu seria capaz de perdoá-la se ela não desse conta de resistir e morresse. Só de lembrar da cena e dos olhos suplicantes dela sem o brilho de sempre, pedindo, aos prantos, para que eu acabasse com as dores que estava sentindo, eu desmorono de novo.
Fiquei devastada, mas no meio disso tudo, a força para dar conta veio também costurada com os fios do invisível, numa corrente de amor e acolhimento que, ouso dizer, quase se tornou palpável nos momentos mais duros. Chegavam, como abraços, em forma de mensagens de voz, de recadinhos amorosos, de música tocada só para nós, em forma de oração, das tantas correntes de amigos e até desconhecidos pela plena recuperação de nossa menina.
O afeto nos atravessou, atravessou oceanos, bateu fundo em nossos corações. Nos acalantou. Foi como um suspiro! Fez o presente angustiante daqueles dias de hospital (presente que, ufa, agora já é passado!) ser movimento de sonhar futuros outros. De acreditar que sim, isso tudo vai passar e faremos ser diferente aquilo que não queremos que permaneça como está. O abraço de cada um, o carinho e o acolhimento que atravessaram também a tela fria do computador, do celular, chegaram como colo e cafuné de mãe, de vó.
Tudo isso me alimenta agora de uma esperança que eu achava que nem tinha mais. Consigo enxergar saídas, vislumbrar lampejos de um outro tempo, mesmo nestes tempos sombrios, sem brios que o mundo todo atravessa. Não quero a imobilidade deste presente nem para o mundo e nem para Luiza. Quero que tudo que agora dói e lateja seja mola propulsora para o futuro que a gente precisa fazer nascer agora! Que possamos ser brisa, ser vento. Que possamos imaginar e acreditar na imaginação como forma de ação. Que sejamos capazes de transformar toda a nossa fúria e indignação em atitude.
Enfim, entender que a força dessa trama delicada, tecida com os fios do invisível, trouxe de novo a fé no improvável, quando tudo desacredita e a gente ainda insiste, resiste, não desiste de ser antídoto contra todos os venenos. E essa certeza vem do simples contemplar com olho parado e sem pressa as miudezas de encanto gigante que a vida oferece todo dia.
Hoje, debaixo do jasmineiro em flor, no jardim de casa, o maravilhamento veio em forma de imagem, eternizada e partilhada aqui: a mão da Luiza recolhendo do chão a flor caída para enfeitar o meu cabelo. O presente não poderia ser mais simbólico e grandioso! Enfeitou minha alma e perfumou com a brisa das certezas tudo o que andava titubeando em mim!
*Alessandra Roscoe é jornalista, escritora e coordena o Uniduniler (www.uniduniler.com.br ) projeto de mediação de leitura, que desde 2013 percorre o Brasil levando livros e afetos, onde nem sempre eles chegam. Mineira de Uberaba, Alessandra vive em Brasília com o marido e os três filhos, numa casa com muitas árvores, flores e cachorros. Autora de mais de 40 livros para a infância, tem obras traduzidas em outros países, em bibliotecas internacionais, e adaptada para o cinema. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2013.
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