A hora enfim chegou. Entrei 2019 já desempregada. Assumi a minha condição de aposentada, com todas as delícias que ela oferece: ficar em casa de camisola até a hora que bem entender. E tenho ficado, muito. Já perdi a conta de quantos filmes e séries
assisti na tv curtindo a aposentadoria.
Saio de casa apenas para cumprir as obrigações domésticas ou coisas que digam respeito somente a mim. Muitas vezes, vou feliz pagar contas, de vestidinho surrado e havaianas. Também me dou ao luxo de viajar qualquer dia da semana, sem o fantasma da escala de plantão me assombrando: agora posso passear quantos dias desejar sem ficar em dívida com a empresa ou com o colega que me socorreu. Um preço caro pra caramba!
Consegui estabelecer um prazo e ele foi cumprido. Sai tranquila, sem fazer alarde, sem despedidas. Imagina abraçar cada um que fez, faz e fará sempre parte dessa história? Foram 22 anos na última empresa, fiz amigos, mantive amizades, não daria conta. Também evitei constrangedores abraços em quem não fará a menor falta na minha vida.
Quando parar?
A pergunta martelou minha cabeça nos últimos anos. Principalmente depois que me aposentei pelo INSS, no papel, em 2015. Mas não parei de trabalhar.
Primeiro, era preciso criar coragem para fechar um ciclo de 38 anos de carteira assinada. Segundo deixar a televisão, de participar do processo alucinado da notícia, de não ser mais uma das protagonistas da história: “o bom jornalista é aquele que sabe contar uma boa história”, repetem os manuais.
Poucos colegas da redação sabiam que eu já era uma aposentada. Eu não queria lidar com o peso do preconceito que o termo ainda desperto. Aposentaria é associada à velhice improdutiva e à incapacidade física e intelectual. Ora, eu não sou nenhuma velha incapaz, ao contrário, ainda estou “bem sacudida”, usando uma das expressões enigmáticas de minha mãe.
Durante quase três anos mantive a rotina, com tudo que ela nos oferece: correria, arranhões, cobranças, cansaço. Mas também sentindo muita, muita satisfação ao ver
o resultado no ar. Orgulho era a palavra certa, final eu era uma das peças dessa gigantesca engrenagem que é o telejornalismo.
Sendo assim, quando parar?!
Quando deixar de fazer parte desse rave à base de adrenalina potencializada, viciante? A maior delas, foi num domingo de março de 96, meu primeiro plantão na empresa que eu havia acabado de entrar. Mal sabia os nomes e funções dos colegas. Foi um batizado de fogo. Foi quando chegou a notícia da queda do avião do Mamonas Assassinas. A banda estava no auge da popularidade, tinha feito um show em Brasília na noite anterior. Foi uma barata-voa na redação. E eu ali perdida, em choque. Era o prenúncio do que me esperava dali pra frente.
Nos últimos 22 anos, o mix pânico & euforia tomou conta de mim inúmeras vezes. Não foram poucos os dias que tive lágrimas nos olhos ou dei boas risadas na solidão da ilha de edição. Que voltei para casa estraçalhada de tanta revolta ou com a certeza de ter contribuído um tiquinho para mudar uma situação de sofrimento, ter levado alegria a quem sorri tão pouco.
Parar não é uma decisão fácil. É uma mudança de vida!
Depois de décadas na labuta, a liberdade, que parecia tão distante, agora está aqui, ao seu dispor. A liberdade de não ser presa a um cartão de ponto. A liberdade de fazer todas as refeições em casa. A liberdade de não precisar enfrentar diariamente as almas perturbadas que circulam no trânsito, nas filas de banco, nas praças de alimentação, pelos corredores da firma.
A aposentadoria dá sim a liberdade sonhada, porém enxuga sua conta bancária. A preocupação agora é conseguir equilibrar as contas, gastar com parcimônia (o que é
isso mesmo?), esquecer que existem shoppings e restaurantes e só mexer na poupança em caso de extrema urgência. É o que diz o manual dos economistas.
Porém, a minha liberdade não tem tempo para esperar o momento certo de agir. Quero ir e voltar na hora que eu bem quiser. Quero dizer todos os "sim" ou todos os "não" no instante-já da questão. Quero ouvir mais meu coração e deixar a razão falando sozinha. Assim tem sido.
E, como a vida é uma caixinha de surpresas, porquê deixar para lá adiante o que você pode fazer hoje, agora, nesse minuto? Não adie tanto o encontro com a liberdade, não tenha medo da nova rotina sem amarras que nunca teve. Se já cumpriu seu mandato com louvor, devolva o crachá da firma sem medo e sem culpa. Existe vida aqui fora.
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